Em qual momento invalidamos nossas crianças?

Estava andando pelo shopping, quando encontrei uma conhecida que não via há um bom tempo. Paramos para conversar, e enquanto falávamos sobre a vida, chega um menino correndo, esbaforido, mostrando as mãozinhas cheias de balas. Ele disse:

– Mãe, mãe veja só o que ganhei!!!

– Fique quieto meu filho. Não está vendo que estou conversando? – respondeu a mãe.

– Mas mãe…

– Agora não, estou ocupada. Depois você fala.

– Mãe… (já com uma cara tristonha)

– Você ainda não aprendeu que “quando um burro fala, o outro abaixa as orelhas?”

Nesse momento o menino se afastou cabisbaixo.

Confesso que eu não ouvia há muito tempo essa história do “burro ter que abaixar as orelhas enquanto o outro fala”. Porém, lembro que na minha infância era uma expressão corriqueira, utilizada para fazer as crianças se calarem.

Despedi-me logo em seguida, e fui embora me perguntando quantas vezes, ainda que inconscientemente, invalidamos nossas crianças.

Cuidando das nossas crianças

O que o menino tinha a dizer era importante para ele e talvez até fosse uma contribuição para nós. Poderia ser muito mais relevante do que aquela conversa superficial, que acontece quando se encontra uma pessoa que não se vê há tempos.

Devemos tomar muito cuidado com a forma através da qual lidamos com os nossos filhos. O que funcionava para nós já não funciona mais para eles. Os tempos são outros e as crianças são expostas a estímulos muito mais cedo.

A forma como eles conversam conosco hoje em dia é outra. Muitas vezes, abordam assuntos considerados “de adultos” com muito mais clareza e perspicácia do que nós mesmos.

Quando nos dirigimos dessa maneira a uma criança, além de estarmos podando-a de se manifestar, estamos insinuando que ela tem dificuldades na aprendizagem. Afinal, ao usar a palavra “burro” emitimos um julgamento de inferioridade (termo pejorativo, pois o coitado do burro é um animal muito inteligente).

Sim, pois dependendo da idade da criança, ela pode levar ao pé da letra tudo o que falamos (alguém lembra do Fantástico Mundo de Bob?). A partir de uma resposta como essa, a criança pode desenvolver a crença de que seja, de fato, incapaz de compreender adequadamente. E isso pode futuramente comprometer o bem-estar daquele ser, já que tal crença limitará seu bom funcionamento. Conheço adultos que até hoje, quando recebem alguma mensagem, interpretam de forma distinta do que se quis dizer.

Transformando as ações

Eu mesma sempre fui uma criança muito comunicativa. Passei minha infância ouvindo da minha mãe que eu falava muito alto. Mas, por volta dos meus 5 ou 6 anos, aconteceu um episódio muito marcante: minha mãe, sem perceber, tomou uma atitude que influenciou a minha comunicação e a forma como eu falava em público. Isso repercutiu durante toda a minha adolescência e parte da vida adulta. Só percebi o quanto havia afetado a minha vida e o meu desenvolvimento pessoal depois que tive acesso à ferramentas de expansão de consciência.

A questão é que, dependendo da maneira como pedimos para a criança se calar, podemos interferir na vida dela, inclusive prejudicando-a na vida adulta. A criança pode crescer calada, achando que o que ela tem para dizer não é algo importante. Não raro, em grupos escolares, ela passa a não ter opinião própria, pois não “tem voz” para se fazer ouvir. Já adulta, tem dificuldade de se impor nas relações interpessoais, seja no trabalho ou no relacionamento familiar, pois na infância foi incentivada a se calar.

No meu trabalho atendo crianças e adolescentes que chegam até mim para que os auxilie a lidar com estresse, ansiedade, TDAH, tensão, entre outras questões. Durante as sessões, a maior parte reclama que “ninguém as ajuda”. Elas não sabem lidar com o que está acontecendo simplesmente porque não são ouvidas.

Acontece um determinado episódio, depois outro, e logo em seguida são rotuladas com algum diagnóstico. A partir daí, recebem aconselhamento para buscar um tratamento terapêutico. Tentam se explicar, conversar sobre as situações, mas quando percebem que de nada adianta, acabam se calando. Junto cai a auto-estima desse indivíduo que está, aos poucos, sendo podado de desenvolver seu potencial de comunicação.

Potencializando o funcionamento

Como seria se colocássemos nossas crianças em um lugar onde aprendessem a respeitar o próximo e ouvir o outro? Um local onde se sentissem seguras e confortáveis sabendo que o falar e o ouvir ocorre de forma mútua? Algumas dicas:

– Ouça o que a criança tem para falar, sem julgamentos;

– Ensine à criança a dar a sua opinião, mas também a ouvir o que a outra pessoa tem a dizer. Mostre que é normal ter opiniões diferentes, pois cada pessoa é única;

– Não defenda a sua verdade levantando a voz para se impor. Dessa forma a criança aprende que não precisa gritar para se fazer ouvir;

– Desenvolva a auto-estima da criança, estimulando seus pontos positivos e mostrando que os pontos negativos podem ser transformados, só depende da sua escolha.

E o menino do início da história? Após algumas semanas a mãe trouxe ele no meu Espaço argumentando que  ele era “hiperativo” e ela queria saber se eu podia ajudá-lo. Descobri que tudo o que ele queria naquele momento era receber o elogio da mãe por ter ganhado em uma gincana de inglês que uma escola de idiomas estava promovendo no Shopping. As balas eram o prêmio por esse menino tão inteligente ter ganhado em primeiro lugar.

 

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